Uma Reflexão Profunda sobre a Parashá Acharei Mot
Por David Havilá
Introdução: O Paradoxo de Nadav e Avihu
A Torá nos relata um episódio perturbador: “Hashem falou a Moshe após a morte dos dois filhos de Aharon, quando eles se aproximaram de Hashem, e morreram” (Vayikra 16:1). Este evento gera profundas questões sobre a natureza do serviço divino e os perigos da espiritualidade mal direcionada. O Ramban, citando Ibn Ezra, oferece uma interpretação direta: a morte foi consequência de terem se aproximado de Hashem de forma inadequada. Contudo, o Talmud (Yevamot 64a) apresenta uma perspectiva diferente, baseada em Bamidbar 3:4, atribuindo sua falha à decisão de não se casar e procriar.
Harmonizando as Perspectivas:
O Talmud (Yevamot 62a) ensina que a falta de filhos faz a Shechiná se afastar de Israel. Nadav e Avihu, porém, raciocinaram de forma singular: acreditavam que apenas indivíduos de grandeza excepcional poderiam realmente “hospedar” a Shechiná. Em sua aparente humildade, consideraram-se indignos desse papel e optaram por não estabelecer famílias. Aqui reside o paradoxo: sua decisão de abster-se do casamento, embora aparentemente humilde, revelava uma sutil vaidade. Ao mesmo tempo em que se consideravam pequenos demais para atrair a Shechiná através da procriação, sentiam-se grandiosos o suficiente para se aproximarem de Hashem de maneira extraordinária – um serviço que julgavam adequado apenas para almas elevadas como a deles. O Zohar (III, 124a) esclarece que a verdadeira humildade não nega os próprios dons, mas os utiliza em serviço aos outros. Nadav e Avihu falharam em reconhecer que a continuidade espiritual de Israel depende justamente da transmissão de valores através das gerações.
O Caso de David e Mical: Honra e Humildade em Equilíbrio
Esta tensão entre humildade e vaidade reaparece dramaticamente na interação entre o Rei David e sua esposa Mical (2 Samuel 6:20-22). Quando David dançou com fervor diante da Arca, Mical o criticou: “Quão honrado foi hoje o rei de Israel, que se expôs hoje aos olhos das servas de seus servos, como um dos rudes se expõe!” A Halachá (Ketubot 17a) estabelece um princípio crucial: um rei não pode renunciar à honra real, pois esta honra pertence ao povo, não ao indivíduo. Mical argumentou que, ao dispensar essa honra, David implicitamente afirmava possuir uma grandeza pessoal que transcendia seu papel real – uma atitude de auto-exaltação. A resposta de David foi reveladora: “Diante de Hashem, que me escolheu… para me designar sobre o povo de Hashem – de Israel – diante de Hashem eu me alegrei.” Ele explicou que sua alegria vinha justamente da consciência de ser um instrumento de Hashem. Sua dança não era expressão de orgulho, mas de completa submissão ao Divino.
Lições Contemporâneas: Entre o Eu e o Outro
- O Perigo da Espiritualidade Isolada: Como Nadav e Avihu, podemos cair na armadilha de buscar experiências espirituais intensas enquanto negligenciamos responsabilidades comunitárias básicas (Pirkei Avot 1:2).
- A Honra como Serviço: A lição de David nos ensina que posições de liderança são oportunidades para servir, não para se exaltar (Talmud, Ta’anit 20b).
- Humildade Autêntica: O verdadeiro temor a Hashem não nega nossos talentos, mas os coloca em perspectiva divina (Mesilat Yesharim, cap. 22).
A Parashá Acharei Mos nos confronta com um desafio permanente: como cultivar uma relação com o Divino que seja ao mesmo tempo intensa e humilde. As histórias de Nadav e Avihu e de David nos mostram os extremos a evitar – tanto a falsa modéstia que esconde o orgulho, quanto a alegria desenfreada que pode ser mal interpretada. Que possamos encontrar o ponto de equilíbrio, onde nosso serviço a Hashem seja marcado tanto pelo fervor quanto pela consciência de nosso lugar no grande esquema da criação. Como diz o Salmo 34:3: “Minha alma se gloriará no Eterno; os humildes ouvirão e se alegrarão.” Para mais artigos e estudos, visite davidhavila.com/blog
Fontes Citadas:
- Ramban e Ibn Ezra sobre Vayikra 16:12.
- 2.Talmud Yevamot 62a-64a3.
- Zohar III, 124a4.
- Ketubot 17a5.
- Mesilat Yesharim, cap. 226.
- Pirkei Avot 1:2