Os Treze Princípios da Fé Judaica: O Legado de Maimônides

Por: David Havilá 

  • Os Treze Princípios de Fé, formulados pelo Rabino Moshe ben Maimon (Rambam ou Maimônides, 1138-1204), representam a mais influente e duradoura sistematização das crenças fundamentais do Judaísmo. Em uma tradição que historicamente enfatizou a prática (ortopraxia) sobre o credo (ortodoxia), a articulação de um dogma definido foi uma inovação revolucionária. Estes princípios, no entanto, emergiram como uma declaração amplamente aceita da teologia judaica essencial, fornecendo um insight profundo sobre a visão de mundo judaica acerca de Deus, revelação, e o destino humano.

Percepção e Intelecto

O Grande Maimônides: O Homem e Seu Mundo

Nascido em Córdoba, Espanha, durante a “Idade de Ouro” da cultura judaica, Maimônides foi uma figura renascentista: médico da corte do Sultão Saladino no Egito, líder da comunidade judaica, astrônomo, e a autoridade rabínica suprema de seu tempo. Sua obra monumental buscou criar uma síntese harmoniosa entre a fé judaica e o rigor da filosofia aristotélica. Suas três obras principais são:

  1. Comentário sobre a Mishná: Onde os Treze Princípios foram originalmente formulados, na introdução ao décimo capítulo do tratado Sanhedrin (“Chelek”).
  2. Mishné Torá (“Repetição da Torá”): Um código magistral e abrangente de toda a lei judaica, organizado de forma sistemática e lógica.
  3. Guia dos Perplexos (Moreh Nevukhim): Uma obra-prima filosófica destinada a leitores sofisticados que lutavam para reconciliar a linguagem bíblica com a verdade filosófica.

Por que um Credo no Judaísmo?

A formulação de princípios de fé explícitos foi uma resposta de Maimônides aos desafios de seu tempo:


  • Desafios Externos: O Judaísmo enfrentava críticas do Islã e do Cristianismo, religiões com credos bem definidos, que questionavam a aparente falta de clareza teológica judaica.
  • Desafios Internos: Interpretações heterodoxas, como a crença na corporalidade de Deus ou a negação da origem divina da Torá, eram prevalentes.
  • Impulso Filosófico: Como um racionalista, Maimônides buscava identificar os axiomas lógicos e metafísicos sobre os quais todo o sistema de mitzvot (mandamentos) se baseava.
  • Necessidade Pedagógica: Ele visava fornecer um resumo claro e acessível dos fundamentos da fé para a educação das massas.

Os Treze Princípios: Uma Estrutura Semples

Os princípios podem ser organizados em três categorias temáticas, refletindo um sistema de pensamento coerente: I. A Natureza de Deus; II. A Autenticidade da Torá; e III. A Justiça de Deus e o Destino Humano.


Essa Categoria define a existência e a natureza do Ser Supremo.


1. A Existência de Deus

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que o Criador, bendito seja Seu nome, é o Criador e Guia de tudo o que foi criado; e que somente Ele fez, faz e fará todas as coisas.”

Este é o axioma fundamental: a existência de um Criador que é a Causa Primeira de tudo. Para Maimônides, esta não é uma crença cega, mas uma conclusão lógica. Influenciado por Aristóteles, ele via Deus como o “Motor Imóvel”, a causa não-causada necessária para explicar a existência do universo. Deus não apenas criou o mundo, mas o sustenta ativamente a cada momento.


2. A Unidade Absoluta de Deus

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que o Criador, bendito seja Seu nome, é Um; e que não há unidade de forma alguma como a Sua; e que somente Ele é nosso Deus, que foi, é e será.”

Este princípio afirma o monoteísmo radical do Judaísmo. A unidade de Deus (Yichud) é absoluta e única, significando que Ele é indivisível, sem partes, componentes ou pluralidade. Esta visão rejeita não apenas o politeísmo, mas também concepções como a Trindade cristã. A essência deste princípio está na declaração central do Judaísmo:

“Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um (Echad).” (Deuteronômio 6:4)

3. A Incorporeidade de Deus

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que o Criador, bendito seja Seu nome, não tem um corpo; e que Ele é livre de todas as propriedades da matéria; e que Ele não pode ter nenhuma semelhança.”

Maimônides considerava este princípio um corolário lógico da unidade e perfeição de Deus. Um ser físico é, por definição, composto de partes, limitado no espaço e sujeito a mudanças – características incompatíveis com a natureza divina. Todas as descrições antropomórficas de Deus na Bíblia (a “mão de Deus”, os “olhos de Deus”) devem ser entendidas como metáforas para acomodar a limitada compreensão humana. Em sua Mishné Torá, ele afirma que quem acredita que Deus tem corpo é um herege.


4. A Eternidade de Deus

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que o Criador, bendito seja Seu nome, é o primeiro e o último.”

Deus existe fora do tempo; Ele não tem começo nem fim. Para Maimônides, a eternidade divina não é meramente uma duração infinita, mas uma existência atemporal. Deus é pura atualidade, sem potencialidade ou mudança, uma realidade que transcende os conceitos humanos de “antes” e “depois”.

“Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, sim, de eternidade a eternidade, tu és Deus.” (Salmo 90:2)

5. A Adoração Exclusiva a Deus

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que ao Criador, bendito seja Seu nome, e somente a Ele, é correto orar; e que não é correto orar a qualquer ser além Dele.”

Sendo Deus o único Criador, uno e transcendente, a adoração e a oração só podem ser dirigidas a Ele. Este princípio proíbe não apenas a idolatria clássica, mas também a oração a intermediários como anjos ou santos. Qualquer desvio da adoração exclusiva compromete o monoteísmo puro que Maimônides via como a essência do Judaísmo.


Essa Categoria estabelece a comunicação de Deus com a humanidade através da profecia, com a Torá como sua expressão máxima.


6. A Realidade da Profecia

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que todas as palavras dos profetas são verdade.”

Deus se comunica com a humanidade através de indivíduos escolhidos, os profetas. Para Maimônides, a profecia era um fenômeno natural, o mais alto nível de desenvolvimento intelectual e espiritual humano, através do qual a mente humana se conecta com o “Intelecto Ativo” divino.


7. A Supremacia da Profecia de Moisés

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que a profecia de Moisés, nosso mestre, a paz esteja com ele, foi verdadeira; e que ele foi o pai de todos os profetas tanto os que o precederam quanto os que o sucederam.”

Moisés ocupa uma categoria única. Enquanto outros profetas recebiam revelações através de sonhos e visões (linguagem simbólica), Moisés comunicou-se com Deus diretamente, “face a face” (Deuteronômio 34:10), em um estado de plena consciência. Esta clareza sem precedentes confere à sua profecia a Torá autoridade suprema e final.


8. A Origem Divina da Torá

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que toda a Torá que agora está em nossa posse é a mesma que foi dada a Moisés, nosso mestre.”

Este é o princípio da Torá Min HaShamayim (“Torá dos Céus”). Afirma que os Cinco Livros de Moisés foram revelados por Deus em sua totalidade, palavra por palavra. Não é uma composição humana inspirada, mas a expressão direta da sabedoria divina. Isso estabelece a autoridade inquestionável da Torá como o fundamento de toda a lei e prática judaicas.



9. A Imutabilidade da Torá

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que esta Torá não será alterada, e que nunca haverá outra Torá do Criador, bendito seja Seu nome.”

A revelação no Sinai foi final e definitiva. A Torá e seus mandamentos são eternos e não serão substituídos ou revogados. Este princípio estabelece a permanência da aliança e rejeita as reivindicações do Cristianismo e do Islã de possuírem revelações posteriores que substituem a Torá. Como afirma o hino litúrgico Yigdal, baseado nestes princípios:

“Ele não alterará nem mudará Sua lei, nunca, por nenhuma outra.”



Essa Categoria aborda a relação entre Deus e a humanidade, focando na justiça divina, na responsabilidade humana e no propósito último da história.


10. A Onisciência Divina

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que o Criador, bendito seja Seu nome, conhece todas as ações dos seres humanos e todos os seus pensamentos.”

Deus possui conhecimento completo do universo, incluindo as escolhas humanas. Maimônides lidou com a aparente contradição entre a onisciência divina e o livre-arbítrio humano argumentando que o conhecimento de Deus é de uma natureza diferente da nossa; não é temporal e, portanto, não predetermina nossas ações. Nós permanecemos livres para escolher e somos responsáveis por nossas ações.


11. Recompensa e Punição

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que o Criador, bendito seja Seu nome, recompensa aqueles que guardam Seus mandamentos e pune aqueles que os transgridem.”

Ações morais têm consequências. A justiça divina garante que a virtude seja recompensada e a transgressão punida. Para Maimônides, a recompensa e punição últimas são de natureza espiritual: a maior recompensa é a imortalidade da alma alcançada através do conhecimento de Deus (Olam HaBa, o Mundo Vindouro), enquanto a maior punição é a aniquilação espiritual (karet).


12. A Vinda do Messias (Mashiach)

Princípio: “Eu creio com fé perfeita na vinda do Messias (Mashiach); e mesmo que ele se demore, aguardo todos os dias por sua vinda.”

Esta é a afirmação da esperança escatológica judaica. Um futuro líder humano, descendente do Rei Davi, redimirá Israel do exílio, reconstruirá o Templo e inaugurará uma era de paz e conhecimento de Deus para toda a humanidade. Esta crença confere propósito e direção à história.


13. A Ressurreição dos Mortos (Techiyat HaMetim)

Princípio: “Eu creio com fé perfeita que haverá uma ressurreição dos mortos em um tempo em que assim for a vontade do Criador, bendito seja e exaltado para sempre Seu nome.”

Este princípio, o mais desafiador para o racionalismo de Maimônides, afirma a crença de que Deus um dia restaurará os mortos à vida. Em seu “Ensaio sobre a Ressurreição”, ele defendeu esta crença como um milagre que Deus pode realizar, afirmando a soberania divina sobre a natureza e a promessa de que a justiça final abrange tanto o corpo quanto a alma.


Recepção, Controvérsia e Legado

Inicialmente, os 13 Princípios foram controversos. Filósofos como Hasdai Crescas e Joseph Albo argumentaram que Maimônides foi excessivamente influenciado por Aristóteles e propuseram listas alternativas de dogmas. Outros, como Isaac Abravanel, questionaram a ideia de reduzir o Judaísmo a princípios, afirmando que todas as 613 mitzvot são igualmente fundamentais.

No entanto, com o tempo, a clareza e a coerência da formulação de Maimônides prevaleceram. Sua incorporação na liturgia, através do hino Yigdal (“Exaltado seja o Deus vivo…”) e da declaração em prosa Ani Ma’amin (“Eu creio…”), solidificou seu lugar no coração da vida judaica. O Ani Ma’amin, em particular, tornou-se um hino de resistência, cantado por muitos judeus a caminho do martírio durante o Holocausto.

Hoje, os princípios continuam a servir como um padrão teológico, especialmente no Judaísmo Ortodoxo, embora outros movimentos possam interpretá-los de forma mais metafórica ou vê-los como um importante documento histórico em vez de um credo vinculante.


Uma Arquitetura da Fé

Os Treze Princípios de Fé de Maimônides são mais do que uma lista; são a arquitetura de uma visão de mundo. Eles constroem, passo a passo, uma imagem de um Deus único, incorpóreo e eterno, que se revela através da profecia em uma Torá imutável e que governa o universo com justiça, prometendo uma redenção final. Oito séculos depois, eles permanecem como a mais lúcida e influente declaração das convicções que sustentam a fé e a prática do Judaísmo.


Fontes e Referências

  • Fontes Primárias:
    • Maimônides: Comentário à Mishná (Tratado Sanhedrin, Cap. 10); Mishné Torá (especialmente “Leis dos Fundamentos da Torá” e “Leis dos Reis”); Guia dos Perplexos.
    • Tanakh: Deuteronômio 6:4; Êxodo 20:2-3; Salmo 90:2; Isaías 45:5-7; Daniel 12:2.
    • Talmud: Tratado Sanhedrin 90a-b.




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